Quem se lembra do Dr. Fernando Valle ?

Muitas vezes o vimos a tomar o seu cafesito na Estalagem da Ponte de Mucela a caminho de Coimbra.
O seu filho Abel foi meu contemporaneo e colega no Liceu D. João III em Coimbra. Os anos passaram-se , cada um foi para seu lado e nunca mais o vi

Fernando Baeta Cardoso do Valle, nasceu no dia 30 de Julho de 1900, em Cerdeira, aldeia no centro de Portugal, aos dois anos já vivia em Côja, Arganil, numa casa solarenga, que continuo na posse da familia, com vista para o rio Alva.
Faleceu em Coimbra em 2004, em casa da filha, com 104 anos, durante o sono. Fez parte de uma família de seis irmãos, gente abastada, mais pelo esforço da mãe, o pai repartia o património pelos doentes que o consultavam e a quem não cobrava, era o Dr. Alberto Valle.
Fernando Valle foi também médico , recordava o pai como "Alguém bom em excesso", a mãe comandava os negócios da casa de lavoura, de onde vinha o alimento para os vários filhos.
O pai era agnóstico positivista, formado nas virtudes da ciência, a mãe era uma mulher católica, muito religiosa, sem ser fanática, respirava a tradição portuguesa das serranias, do bom senso e calor humano.
O regicídio em Fevereiro de 1908, estremeceu o país, mas o acontecimento chegou-lhe esbatido, a ideia do rei e da Rainha era mitológica na sua imaginação.
A implementaçõ da Républica, quando tinha dez anos, determinou uma atitude para toda a vida.
Em 1920, ainda estudante de medicina, casou com Beatriz Simões Dias, sua conterrânea, de quem teve seis filhos, criados em Côja, referência matriarcal dos Valle.
Aos 23 anos entrou para o Grande Oriente Lusitano, escolheu Egas Moniz para nome de iniciado, pelo exemplo de lealdade do aio de Afonso Henriques, quando para resgatar a honra da palavra dada, se apresentou de forca ao pescoço.
O ideal maçónico, foi a sua grande referência ética, " A maçonaria é a luz e a Républica o caminho" Iniciou-se na loga Revolta e apesar da proibição de 1935, conseguiu evitar que encerrasse, reunindo clandestinamente os seus sete mestres. Opôs-se ao 28 de Maio de 1926, mesmo sabendo que o seu chefe militar era macônico " A linguagem ordinária de caserna de Gomes da Costa identificava-o logo ", viu a tomada de posse de Salazar como " coisa má para Portugal, gostava do poder, queria o poder pelo poder, tornou-se um homem mau " vieram-lhe dizer que Salazar não regateava benesses a quem se atrelasse a ele , recusou o conselho que não pedira, preferiu entrar na Junta de Acção Patriótica o que lhe custou uma detenção no Aljube, de Abril a Junho de 1962. Em 1971 o regime salazarista quiz afastá-lo do Hospital da Midericórdia de Arganil, mas houve uma manifestação de mulheres a seu favor que impediu o seu afastamento , dando-lhe grande alegria. Fiel ao ideário républicano e social, com 73 anos participou clandestinamente, na reunião fundadora do Partido Socialista, em Bad-Munstereifel, na Alemanha.
Não aceitou benesses políticas depois do 25 de Abril, mas depois de insistências de amigos, que viam nele uma figura consensual para conter excessos partidários, aceitou ser governador-cívil de Coimbra.
Foi fiel aos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade. traçou o campo político onde quis estar - o da democracia parlamentar. Combateu o Estado Novo, partidário républicano na guerra-civíl de Espanha, apoiante das candidaturas presidenciais de Norton de Matos ( 1949) e Humberto Delgado (1958) e em 1973 fundador do Partido Socialista. Com o 25 de abril considerou encerrada a sua intervenção política activa, dedicando-se à participação cívica, que continuou a exercer activamente. Fernando Madail escreveu a sua biografia " Fernando Valle , um aristocrata de esquerda "
Excertos de conversas do Público com Fernando Valle:
" Dizia Machado de Assis, que a esperança é o melhor bem da vida, eu sou um homem de esperança no futuro. Confio no homem e nas suas possibilidades, confio especialmente nas possibilidades da juventude,da minha própria experiência sei que a juventude é generosa e é rebelde " "Cito Jefferson - os velhos têm o previlégio da tranquilidade. Podem fugir à vozeria da multidão e dedicar-se à conversa com os netos." " A lucidez pode ser um exercício de crueldade. Tive falhas de memória, a coordenação dos movimentos era trôpega, dependia dos outros para o mínmo gesto e por isso passava cada vez mais tempo no leito. Reflecti sobre a dignidade da morte, muito,se fosse uma situação irreversível,,correu bem, mas encarei a hipótese da eutanásia. " " Se o meu amigo acha que tem instintos assassinos e não os pode controlar, porque a força dos seus genes a isso o obriga, isso significa apenas que ou é mentiroso ou não é inteligente " " As três personalidades que no sec. XX melhor representaram os valores de igualdade, liberdade e fraternidade, não são europeus nem de raça branca: Nelson Mandela, Luther King e Ghandi., além disso Ghandi conseguiu realizar políticamente um sonho que S. Francisco de Assis formulara há mais de oitocentos anos, o da pacificação, a resolução dos conflitos sociais pela via da não violência. "
" Cônfucio um dia formulou este pensamento, que nunca deixa de ser actual - Ouço e esqueço, leio e recordo, faço e aprendo "
" Lamento que não tenha sido editado um livro, com os artigos de Jaime Cortesão publicados na Seara Nova , Cartas à Mocidade, neles escreveu- Os actos têm que estar em harmonia com a consciência . "
" A fotografia ( fundação do PS em Baden-Munstereifel, Março de 1973) traz-me saudades muito grandes de quando era mais jovem, quanto ao partido ele cá está e eu continuo nele,não será tão bom como dezejávamos que fosse, mas lá vai andando, é dos melhores que cá existem. "
" ( Sobre o Governo Durão Barroso e a sua ida para presidente da Comissão Europeia ) Conheço-o mal, mas acho que tem algum merecimento. Quanto à ida dele para Bruxelas, penso que neste momento se precisava mais dele a actuar cá dentro, mas não duvido que também pode ter uma boa actuação lá fora "
" A democracia está estabelecida em Portugal, o que não está é sentida, o povo português está ainda muito longe de ser um povo culto, de se aperceber das realidades nacionais. Mas é um bom povo, feito de gente formidável "
Fonte: Excertos do texto de António Melo in Público ( 27.11.2004)