A Moda do Pe Descalço
Pé descalço Por Eng. Manuel Farias
Por vezes assistimos a grandes
discussões sobre a autenticidade do calçado no folclore português: se as botas
podem ter rasto de borracha, se as chinelas podem ter bordados e lantejoulas,
se os tamancos são com biqueira levantada, se o couro é preto ou castanho
natural, etc. E que tal ir um pouco mais além e questionar: dentro do mesmo
grupo de folclore quem deverá andar calçado e quem deverá andar descalço?
Vamos descalçar esta bota.
Os últimos reis da dinastia de
Bragança tomaram medidas para modernizar os usos lisboetas, nomeadamente
através da proibição de entrar em Lisboa com pé descalço. Os reis Luis e Carlos
promulgaram decretos sobre esta matéria e deu em nada, numa altura em que os
portugueses tinham o uso arreigado de andar descalços, por penúria ou tradição;
mesmo nas estações mais frias, esta prática era observada pela vasta multidão
de indigentes das cidades e seus sub-urbanos e pela generalidade dos aldeões
com coirato enrijecido. A primeira república produziu pouco, em matéria de
legislação e em condições materiais, apesar dos relatos cruéis e severos dos
estrangeiros, referindo os portugueses como selvagens, numa época em que “…nem
os marroquinos andam descalços”.
A Liga Portuguesa da Profilaxia
Social foi fundada em 1924 por três jovens médicos (António Magalhães, Cândido
Cosa e Veiga Pires) e uma das suas primeiras campanhas foi dirigida ao uso do
pé descalço, considerando-o “…indecoroso, inestético e anti-higiénico”, através
da publicação do livro “O Pé Descalço – Uma Vergonha Nacional que Urge
Extinguir”, em 1928 e que viria a ser objecto de reedição para uma nova e
intensa campanha dirigida ao norte do país, para erradicar os persistentes, em
1956. Em Agosto de 1926 foi publicado o decreto-lei nº 12073 que impunha:
a) É
proibido o trânsito de pessoas descalças na via pública das áreas das cidades,
que serão delimitadas por postura municipal;
b) As disposições poderão igualmente ser aplicadas a outras localidades por decisão dos governos civis;
c) A transgressão do disposto será punida com uma multa de $50 a 2$00. A reincidência será punida com o dobro da pena.
Isto significa que me 1926 as
autoridades apenas proibiam o uso do pé descalço dentro das cidades. Em simultâneo,
o Estado Novo editou brochuras sobre a necessidade de erradicar estes usos,
visando tirar das cidades mendigos, desempregados que podem trabalhar, vendedores
ambulantes e outros parasitas que se servem de “…manha, insolência, ameaça,
violência, etc.”. Naturalmente, o Estado Novo combinava o propósito de
erradicação do pé descalço com a violência social da sua ideologia de direita,
atacando a pobreza através de decretos e varrendo o lixo civilizacional para
debaixo do tapete da classe dominante.
Com estas medidas poderemos dizer
que o hábito do descalço nas cidades foi erradicado na década de 30 do século
XX, com forte empenho dos governos civis e fiscalização da PSP. O uso
manteve-se arreigado no mundo rural português, que representava em meados do
século XX mais de dois terços da população.
Em Agosto de 1947, foi promulgado
o decreto-lei nº 36448 que deu um novo impulso a este movimento profilático. A nova
campanha foi simultânea com programas de vacinação anti-tétano e apoiada na
sensibilização para a saúde pública. Com efeito, este fenómeno não era
explicado apenas pelo argumento da pobreza, mas sobretudo pela habituação; os
documentos da época consideravam que o Alentejo era a única região do país onde
os rurais andavam calçados.
Na década de 50, muitas pessoas,
mulheres e homens, foram apresentadas ao Tribunal de Polícia, depois de presas
durante 1 ou 2 dias, quando eram apanhadas a circular descalças nas cidades e
nas vilas, já que nas aldeias a liberdade era outra. Aqui viam-se mulheres com
arcadas de ouro e pé descalço, no verão sempre e muitas vezes todo o ano.
Viam-se homens com botas dependuradas ao ombro, ou tamancos metidos nos
alforges, para calçar apenas na chegada à vila, evitando assim multas e
chatices.
Onde está este uso do povo
representado nos grupos de folclore?
Fonte: Jornal Folclore, nº 202,
edição Dezembro 2012De
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