Livro de Leitura da Primeira Classe
Sou
duma geração que há sessenta anos atrás se iniciou na leitura, através
do bem conhecido livro de leitura da 1ª Classe do Ensino Primário.
Tratava-se de um livro profusamente ilustrado, com um grafismo que
marcou uma época. Através dele aprendíamos a juntar as letras, formando
sílabas, que reunidas geravam palavras, ali ilustradas, para o reforço
visual apoiar a memorização.
Estávamos
no Estado Novo, pelo que não é de admirar que doutrinariamente o livro
veiculasse a Trilogia da Educação Nacional: “Deus, Pátria e Família”. O
mesmo se passava com aqueles que se lhe seguiram até à 4ª classe.
Na
Aritmética, decorávamos a tabuada até à casa do 10. Qualquer um de nós
sabia de cor, o resultado de 100 operações de multiplicação, as quais
iam desde o 1x1 até ao 10x10. Na aula, o professor passava-nos contas
para fazer, o que era feito em "pedras" de ardósia nas quais escrevíamos
com lápis de pedra. Era o “Magalhães” que Salazar e bem, punha à nossa
disposição. Assim adquiríamos aptidão de cálculo mental e treinávamos o
cálculo necessário à nossa vida do dia a dia.
Levávamos
como trabalho para casa, fazer contas num caderno quadriculado, para
disciplinar a escrita e a dimensão dos algarismos. E tínhamos sempre uma
cópia para fazer, não só para aperfeiçoar a caligrafia, mas também
porque a cópia ajudava à memorização. Para o efeito, usava-mos um
caderno de linhas. Porém, aqueles que tinham uma escrita mais irregular
faziam cópias em cadernos de duas linhas, para aprenderem a dimensionar
as letras, até conseguirem ficar com uma caligrafia padrão.
Fazíamos
também ditados, nos quais o professor nos lia pausadamente um texto
relativamente curto, que nós tínhamos que escrever no caderno. Assim
treinávamos a capacidade de converter a oralidade da língua na sua forma
escrita. E acabava-mos por não dar erros.
Fazíamos
ainda redacções com tema igual para todos, visando despertar e
exercitar a capacidade criadora de cada um, bem como exercitar a
correcção da ortografia e da caligrafia.
Fazíamos igualmente desenhos com lápis de carvão e lápis de cor, para o que utilizávamos um caderno de folhas lisas.
Os
cadernos tinham geralmente na capa, ilustrações apelando ao amor à
Pátria ou exaltando instituições gratas ao Regime, como era a Mocidade
Portuguesa. Na capa do caderno, escrevíamos sempre o nosso nome, o
número e a classe.
Tínhamos
também um “caderno de significados”, que era um caderno de duas linhas
com um traço vertical a vermelho, onde registávamos por indicação do
professor, as palavras difíceis à esquerda do traço e o respectivo
significado à direita.
Escrevíamos
com canetas de molhar o aparo nos tinteiros que havia em cada carteira.
Não se podia molhar de mais para não borrar. Ao virar a página,
tínhamos que secar com um mata- borrão que trazíamos sempre dentro do
caderno.
A
caneta de molhar, os aparos, o lápis de carvão, os lápis de cor, o
apara-lápis e a borracha eram guardados dentro duma caixa de madeira,
com tampa de correr. Esta, conjuntamente com os cadernos, o livro de
leitura e mais tarde outros livros, era transportada numa sacola de
serapilheira que levávamos a tiracolo.
E hoje?
Pelos
mais diversos motivos, algumas das práticas escolares atrás referidas
foram abandonadas. Algumas naturalmente por serem obsoletas. Hoje não
faz sentido escrever com canetas de molhar e provavelmente fazer contas
em pedras de ardósia. Mas não é a posse e a utilização de um “Magalhães”
que treina o cálculo mental e a prática das operações elementares, bem
como a prática da caligrafia e a execução livre de desenhos.
Hoje
já não se usam sacolas de serapilheira, mas mochilas à medida da bolsa
dos pais de cada um. Aí o personagem principal é o “Magalhães” – Faz
Tudo!
Já
não é preciso saber fazer contas, basta ter o “Magalhães” ligado à
Internet e fazem-se as contas no Google. Este motor de busca é a cabeça
deles.
Fazer
cópias para quê? Por um lado não precisam de memorizar nada e por outro
lado basta utilizar o “Magalhães” e escrever no Word. Podem dar erros à
vontade, que o Word assinala a vermelho os erros de ortografia e a
verde os erros de sintaxe. Depois basta tirar uma cópia na impressora.
Esta é a caneta deles.
A
caligrafia é a que eles quiserem, é o tipo de letra que escolherem no
Word, seja ela Areal, Times New Roman, Comic Sans MS, ou outro tipo
qualquer, que lhes der na real gana. Não há caligrafia individualizada,
reflexo do todo uno que é cada ser humano. Há o estereótipo gráfico
porque cada um optou, no tamanho que escolheu.
O
desenho é executado no “Magalhães” com um programa gráfico melhor ou
pior, que permite gerir espessuras de traço, cores, luminosidade,
contraste, texturas e estilos de desenho. A procura de perfeição a
desenhar tem a ver com o domínio do programa utilizado. Essa é a arte
deles.
Cadernos
de significados para quê? Vai-se ao Google e lá está a Wikipédia. A
Wikipédia diz tudo. Para que é que eles precisam de saber, se está na
Wikipédia?
Fazer
redacções hoje é fácil. Vai-se à Wikipédia e com o ponteiro do rato,
copia-se e cola-se. Pesquisa em múltiplas fontes? Rearranjo dos
materiais recolhidos em linguagem própria? Trabalho de síntese? Para
quê? O que está na Wikipédia é que é! Mas cautela meninos, que os
professores dispõem de um programa gratuito existente na Internet que
permite ver se os meninos copiaram e colaram ou não. Depois não se
queixem se forem acusados de ter copiado à letra, o trabalho
apresentado, muitas vezes de forma abrasileirada.
Aviso à navegação
Assiste-se
hoje aos mais diferentes níveis, ao facilitismo que o pervertido
Sistema Educativo Português concede aos alunos, impreparando-os para a
vida. E tudo começa por uma coisa muito simples. O esquecimento ou a
ignorância de que cada um de nós só dá valor aquilo que foi fruto do seu
esforço pessoal de aprendizagem e aperfeiçoamento, o que longe de
facilitismos, passa pela aquisição e memorização de saberes, sem os
quais o ser humano não consegue em cada instante julgar e decidir com
propriedade.
Corremos
o risco de estar a preparar seres humanos dependentes do “Magalhães”,
da Internet e da Wikipédia, os quais longe de serem pessoas livres,
estão condicionados à informação padrão veiculada “on line”.
Cerca
de dois mil anos depois de Spartacus, o gladiador, ter liderado um
exército de mais de cem mil escravos contra a opressão do Império
Romano, é chegada a altura em que como homens livres, devemos
consciencializar toda a gente dos riscos resultantes em termos de
liberdade, da utilização de informação estereotipada e padronizada, bem
como pela subordinação da criança e do jovem às rotinas do “Magalhães” –
Faz tudo.
Caderno de significados
De Hernani Matos http://dotempodaoutrasenhora.blogspot.pt
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